Internado sob custódia policial desde o último domingo (27), Elissandro Spohr, o Kiko, um dos sócios da boate Kiss, apresentou sua versão sobre o incêndio que matou 237 pessoas em Santa Maria. Em depoimento exclusivo ao Fantástico, ele falou sobre as falhas nos mecanismos de prevenção de incêndio que contribuíram para a tragédia (veja o vídeo). Kiko, 29 anos, está no Hospital Santa Lúcia, em Cruz Alta, a cerca de 130 quilômetros de Santa Maria.
“A pergunta que eu mais tenho medo é ‘o que dizer aos pais?’ Eu não sei o que dizer aos pais”, afirmou Kiko, em depoimento gravado com um telefone celular pelo advogado Jader Marques, a partir de perguntas encaminhadas pela RBS TV. Abalado e com prisão temporária prorrogada por mais 30 dias, Kiko não come direito e recebe acompanhamento de um psicólogo e um psiquiatra. “Não vou poder voltar a morar em Santa Maria. Não sei se vou ser preso, não tenho mais banda. Não sei se eu ainda tenho amigo”, desabafou.
Segundo um dos sócios da boate Kiss, havia de 600 a 700 pessoas no local na madrugada do incêndio. Ele chegou ao local por volta da 1h de domingo. "Eu geralmente eu entro e pergunto: ‘E aí, como é que tá?’. ‘Tá bom, tá razoável, deve ter umas 700 pessoas’, disseram. Entrei e realmente acredito que tinha perto de 600 a 700 pessoas" disse Elissandro.
"O meu cliente não sabe o número exato de pessoas que havia na casa aquela noite. Porque ele não fez a verificação, a noite foi interrompida. O mais importante é que o meu cliente nunca recebeu dos bombeiros, da prefeitura ou de quem quer que seja uma limitação quanto ao número de pessoas da casa", afirmou o advogado Jairo Marques.
Durante as investigações, o Corpo de Bombeiros informou que a boate estava autorizada a comportar até 691 pessoas. A polícia acredita que na noite do incêndio havia mais de mil pessoas no local. Segundo o advogado Jader Marques, 850 convites foram impressos para a festa Agromerados, que reunia universitários de seis cursos da Universidade Federal de Santa Maria.
“A capacidade da casa, eu nunca tive informação. Não sou um perito, não fiz legislação, não sou estudado nisso", alegou o sócio da Kiss. Sobre o momento em que percebeu as chamas, o empresário declarou ter gritado para que as portas fossem abertas. "Saí gritando ‘abre, abre tudo que é sério!’. Eu mesmo abri as portas, inclusive”, garantiu.
Segundo testemunhas ouvidas pela polícia, seguranças teriam impedido a saída dos frequentadores em um primeiro momento por acreditar que se tratava de tumulto ou briga. Alguns alegaram que os seguranças não queriam deixar os jovens saírem sem pagar a comanda.
Elissandro disse que as próprias vítimas trancavam a saída da boate na hora do incêndio. "Tinha pessoas caindo e eu levantava as pessoas, tentava tirar para fora. Gritava ‘sai, pelo amor de Deus, sai todo mundo, sai todo mundo! Vamos sair que é sério, sai todo mundo!’", afirmou.
Kiko garante que não autorizou o uso de fogos pela banda Gurizada Fandangueira, versão que foi contestada pelo produtor da banda, Luciano Bonilha, que afirmou ter feito outros shows com o uso de pirotecnia na casa noturna. "A banda nunca falou comigo sobre isso. Eu nunca autorizei isso. Faz dois anos, eu acho, que a banda toca lá. Eu vi no mínimo 30 shows deles. Nunca fizeram isso, nem na Kiss. Vi shows deles em outros lugares, eles também nunca usaram isso. Se eu soubesse que iam usar, não deixaria" assegurou Elissandro.
"Lá na Kiss nenhuma vez, em nenhuma oportunidade, aquela banda utilizou fogos", alegou Marques. Segundo as investigações, o grupo era conhecido pelos shows pirotécnicos. Naquela noite, foi usado um produto que deveria ser usado em ambientes abertos.
O dono da boate também se manifestou sobre as adequações no sistema de prevenção de incêndio realizadas em duas ocasiões pela empresa Hidramix. A indicação da empresa teria sido feita pelos próprios bombeiros responsáveis pela vistoria.
"Quando eu entrei de sócio na boate, a boate já estava em funcionamento com alvará de bombeiro, tudo. Eu só renovava. Um ano eu renovei, os bombeiros estiveram lá e detectaram que as minhas portas, que eram já dessas de incêndio, que bate e abre, estavam ultrapassadas. Foi o que eles me disseram. E me indicaram uma empresa chamada Hidramix, que era de um antigo colega deles, que fazia todo esse sistema operacional pra mim" disse Elissandro. Procurada pela RBS TV, a direção da empresa Hidramix não retornou os recados deixados no celular. O Corpo de Bombeiros diz que só vai se manifestar depois de concluído o inquérito.
Em relação ao alvará da boate, vencido desde julho de 2012, o empresário admite que pode ter ocorrido uma “falha”. “Quando veio uma notificação, imediatamente pedi que meu cunhado Ricardo e minha irmã fossem até os bombeiros e encaminhassem a papelada para deixar tudo em dia” garantiu.
“O alvará nunca esteve atrasado. Ele sempre esteve em dia, as coisas sempre estiveram em dia. Extintores em dia, as portas. Conforme foi solicitado, aqui se fez, a gente fez tudo. Nunca me neguei a fazer nada”, disse.
Após reclamações de vizinhos sobre o barulho, Kiko teve de fazer uma obra para aumentar o isolamento acústico da casa. Foi a espuma usada no isolamento que, ao queimar, liberou um gás altamente tóxico. Segundo o empresário, quem acompanhou a reforma foi um engenheiro identificado como Miguel Ângelo Pedroso.
“As opções eram gesso ou espuma. A espuma eu achava horrível, muito feio. Eu optei pelo gesso. Porém continuou o barulho. Eu voltei a chamar o Pedroso para trocar uma ideia, ver o que fazer. A gente botou espuma e madeira por cima. Concreto. E aí, por fim, espuma. Eles queriam que eu botasse espuma em toda a boate. Mas até que não precisou botar em toda a boate. Eu botei só no palco. Para mim, não pegava fogo. Eu sabia que ela era usada em estúdios e que essa era o material usado” afirmou Elissandro.
O engenheiro Miguel Ângelo Pedroso negou que tenha indicado o uso da espuma na boate. "Eu tenho uma quantidade grande de projetos e de laudos acústicos. Jamais em algum projeto acústico eu aconselhei usar espuma", afirmou Pedroso.
Chorando compulsivamente, o empresário descreve a tragédia como um “sonho que acabou”. “Para mim, a Kiss era um sonho que eu tinha. Eu tenho uma banda, eu toco. Entrava dentro da Kiss e cumprimentava todo mundo. Todo mundo me conhece, todo mundo sabe o quanto eu batalhei. Eu sempre me preocupei em ter uma coisa que eu pudesse realizar e eu estava vivendo um sonho. Eu nunca tive uma vida tão boa. E acabou”, disse Kiko.
Elissandro ainda disse que não sabe o que vai ser de sua vida a partir de agora. “Eu não vou poder voltar a morar em Santa Maria. Não sei se vou ser preso, não tenho mais banda. Não sei se eu ainda tenho amigo”, desabafou. “A pergunta que eu mais tenho medo é uma dessas: "O que dizer aos pais?" Eu não sei o que dizer”, afirmou Kiko.