Alguns defendem os valores da Justiça. Outros, os acusados e seus seguidores, falam apenas em perseguição. No meio, muito barulho e instituições que com frequência são vistas com suspeita. Do México à Argentina, passando pelo Brasil, Equador, Bolívia, Peru e Colômbia, deixar o poder na América Latina significa quase automaticamente terminar no banco dos réus. Cada caso é diferente, conforme o alcance das investigações ou a gravidade das denúncias, mas o fenômeno é transversal e suscita um debate em torno da independência do Judiciário, da impunidade e da ingerência política.
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A anulação das condenações de Luiz Inácio Lula da Silva, no Brasil, é o exemplo mais recente de uma tendência que põe à prova ou, no pior dos casos, mina a credibilidade dos tribunais. Em toda a região, a premissa geral é o enraizamento da corrupção que por décadas tem convivido com as camadas de poder e corroído o sistema. E que solapou a confiança de sociedades que, cada vez mais divididas, acabam se entregando às suas convicções políticas, dando as costas ao Estado de direito. Estes são os principais escândalos judiciais que afetam ou envolveram ex-presidentes latino-americanos.
Brasil
A prisão ―e a posterior anulação da condenação― do ex-presidente Lula expôs a Justiça brasileira ao mundo. Lula, segundo a operação Lava Jato, foi o maior beneficiário de uma rede de corrupção que se instalou na Petrobras. A sentença de prisão contra ele foi exibida em 2018 como um troféu pela investigação que abalou a política do país durante quatro anos. Em 2021, é o líder do Partido dos Trabalhadores que coloca a operação contra as cordas, depois da revelação de uma centena de mensagens que mostram a colaboração entre o Ministério Público e o juiz da causa, Sergio Moro, para condenar Lula.
A Lava Jato perdeu força e prestígio. Nem mesmo o presidente Jair Bolsonaro protestou contra o fim da operação. As investigações sobre lavagem de dinheiro contra seu filho senador, Flávio Bolsonaro, levaram o presidente a abandonar o discurso que o fez ganhar as eleições. “Acabei com a Lava Jato porque não há mais corrupção no Governo”, disse o presidente em outubro. Uma reviravolta no roteiro do político que venceu as eleições ao convencer os brasileiros de que lutava contra os desvios do poder, a ponto de chegar a convidar o juiz Moro para ser seu ministro da Justiça. Moro abandonou a magistratura e, após pouco mais de um ano, deixou o Governo, acusando o presidente de interferir na Polícia Federal.
Hoje, Bolsonaro se aferra ao cargo cercado de aliados no Congresso outrora acossados pela Lava Jato, o que sugere que há mais interessados em seu fim do que apenas os apoiadores de Lula. A operação que abalou a política brasileira surgiu na esteira de outro grande caso judicial, o escândalo do Mensalão ―rede de subornos a parlamentares para apoiarem projetos do Executivo em 2005, durante o primeiro Governo Lula―, e está longe de ser a primeira a cair pelas mãos do Supremo Tribunal Federal.
A longevidade da Lava Jato levava a crer que teria um destino diferente do de outras operações judiciais, como Castelo de Areia e Satiagraha, que prensaram empresários e políticos e acabaram anuladas por motivos técnicos. O sentimento de impunidade fora interrompido pelo julgamento do Mensalão, em que vários políticos do PT foram presos, mas Lula não foi acusado. Foi durante as dezenas de sessões do julgamento do mensalão, em 2012, todas televisionadas ao vivo, que a população passou a conhecer pelo nome os ministros da Suprema Corte.
O fato é que a influência do Judiciário na política brasileira foi escancarada com a operação Lava Jato, iniciada em 2013. Desde então, os juízes do STF passaram a contestar as decisões do Executivo com sentenças emitidas de forma expressa e o agendamento de julgamentos com timing político. Com frequência, dão entrevistas para mandar seus recados à sociedade e as sessões de julgamento mais relevantes costumam desembocar em debates acalorados, com troca de ataques entre colegas.
México
No México, a cruzada contra o ex-presidente Enrique Peña Nieto (2012-2018) e seu entorno tem se estreitado à medida que o Ministério Público revisa o mandato de seis anos do homem escolhido para renovar o antigo Partido Revolucionário Institucional (PRI), que governou o México ininterruptamente por mais de 80 anos e até o ano 2000. A peça-chave a partir da qual começou a cair o dominó dos atos de corrupção pelos quais o ex-presidente e seu entorno têm sido acusados é Emilio Lozoya, ex-diretor do a empresa estatal de petróleo Pemex e seu chefe de campanha.
Lozoya, extraditado da Espanha em agosto passado, é acusado de ser o cérebro da rede de subornos milionários da Odebrecht no México. Depois de chegar a um acordo com o Ministério Público, ele confessou que foram distribuídas malas de dinheiro da construtora brasileira para a campanha eleitoral e que também houve suborno de vários deputados para apoiar a reforma energética com a qual Peña Nieto queria abrir o setor às empresas privadas. O ex-presidente, que atualmente mora em Madri, não se pronunciou sobre as acusações. Por enquanto, o Ministério Público solicitou apenas a prisão do ministro da Fazenda e depois das Relações Exteriores de seu Governo, Luis Videgaray, por esse caso, mas deixou claro que o ex-presidente usou tanto ele como Lozoya como “instrumentos”.
Outros ministros de seu gabinete caíram nas mãos da justiça. Rosario Robles, que esteve à frente dos ministérios de Desenvolvimento Social e do Desenvolvimento Agrário, Territorial e Urbano, está em prisão preventiva por seu suposto envolvimento na megatrama de corrupção conhecida como La Estafa Maestra (a fraude-mor), um desvio milionário de recursos públicos. E no final do ano passado também caiu o ex-ministro da Defesa Salvador Cienfuegos, preso nos Estados Unidos acusado de tráfico de drogas. Nesse caso, após uma extradição sem precedentes para o México, ele foi inocentado.
Diante das evidências cada vez mais fortes que ligam Peña Nieto e seu entorno a diversos crimes, o presidente Andrés Manuel López Obrador propôs uma polêmica consulta popular, já endossada pela Suprema Corte, para que os cidadãos decidam se cinco ex-presidentes devem ser julgados.
Argentina
A justiça não tem uma boa imagem na Argentina. Sua credibilidade caiu para menos de 8%, menos da metade da que possuía uma década atrás, segundo os últimos dados do Observatório da Democracia Social Argentina. O Governo, longe de deter o descrédito, investe contra o poder judiciário e busca reformá-lo. Para a oposição, as mudanças têm um único objetivo: garantir a impunidade da vice-presidenta Cristina Kirchner, que liderou o país entre 2007 e 2015.
“Em março ou abril de 2018, quando nem pensava em ser candidato, nessa época Lula foi condenado no Brasil, onde o juiz (Sergio) Moro e o Ministério Público inventaram um caso para envolvê-lo. Escrevi um artigo que se chamava ArgenLula para mostrar as semelhanças com o que estava acontecendo naquela época na Argentina”, disse o presidente Alberto Fernández em declarações no rádio esta semana.
“Não tenho dúvidas de que aqui aconteceu algo que nunca havia acontecido: que o Poder Executivo usou a justiça para perseguir os opositores. Não tenho nenhuma dúvida. E assim aconteceu com Lula, o que se vê nos e-mails entre o juiz Moro e os promotores, nos quais os apressava para chegar às sentenças, para que não fosse candidato. Na Argentina estão aparecendo coisas como estas: ligações, cruzamentos telefônicos e e-mails em que convocavam para a mesa judicial [reuniões com juízes], que o ex-presidente reconheceu que existia”, continuou o presidente, referindo-se à publicação de supostas reuniões do então presidente, Mauricio Macri, com juízes que tinham em mãos um processo contra um grupo empresarial relacionado ao kirchnerismo.
Se a reforma judicial promovida pelo Governo prosperar, o poder dos juízes federais será diluído: dos 12 atuais magistrados passarão a ser 46. Nesta jurisdição estão os principais processos contra Kirchner, acusada de associação ilícita, lavagem de dinheiro, encobrimento e administração fraudulenta, entre outros supostos crimes.
A vice-presidenta nega as acusações e declara ser alvo de perseguição judicial, tese também endossada pelo novo ministro da Justiça, Martín Soria. “Ela, que nada teve a ver com isso, que é inocente, que foi acusada na mídia, judicial e politicamente porque isso é o lawfare, quer que essa mesma justiça a livre da culpa e da acusação, que é o cabível quando alguém não fez nada”, disse Soria.
Algumas das ações judiciais contra a vice-presidenta parecem ter uma base pouco sólida, mas não as que investigam o rápido enriquecimento da família Kirchner durante seus 12 anos no poder. No entanto, é evidente que as causas relacionadas aos altos cargos políticos ganham vigor ou se desaceleram dependendo de quem está na Casa Rosada, o que aumenta a perda de prestígio dos juízes aos olhos de uma população também altamente polarizada.
Peru
Para entender o problema da corrupção no Peru bastaria dizer que seis dos últimos sete presidentes do país estão sendo investigados, mas não seria o suficiente. O sistema judiciário, que, se pressupõe, deveria se encarregar de cercear os crimes, também esteve envolvido em 2018 em um escândalo que desvendou uma máfia sistêmica que incluía o pagamento de subornos em troca de sentenças judiciais e a nomeação irregular de juízes e promotores. A sombra dos delitos ameaça todo o sistema institucional de um país onde quase um quarto da população não tem acesso a água potável e vive na pobreza. A corrupção é percebida como o primeiro problema nacional para os peruanos.
Alberto Fujimori (1990-2000) está preso por corrupção, como também por crimes contra os direitos humanos. Alejandro Toledo (2001-2006), Ollanta Humala (2011-2016) e Pedro Pablo Kuczynski (2016-2018) são acusados de práticas ilegais com a construtora brasileira Odebrecht, caso que também encurralou Alan García (2006-2011), que cometeu suicídio quando ia ser preso. Martín Vizcarra (2018-2020) está sendo investigado por pagamentos irregulares. Apenas Valentín Paniagua, presidente interino entre 2000 e 2001, se salva de estar sob a lupa judicial.
Em meio a esse cenário, que deve se estender a parlamentares e prefeitos, a justiça agiu duramente contra os ex-presidentes envolvidos no caso Odebrecht, cujos reflexos na política peruana começaram a ser conhecidos em 2017. Com todas as investigações ainda em andamento e sem condenações firmes, Toledo foi preso nos Estados Unidos e aguarda uma ordem de extradição, Humala esteve preso e Kuczynski continua em prisão domiciliar.
O sistema judicial, enquanto as investigações seguem seu curso, ainda aguarda uma reforma que a instabilidade política mantém em suspenso e que ficará nas mãos do próximo presidente que sair das urnas.
Colômbia
A combinação das palavras dirigente político e justiça na Colômbia de hoje costuma dar o mesmo resultado: Álvaro Uribe. O ex-presidente atrai veneração e ódio em partes quase iguais entre a população. Seus seguidores o veem como uma vítima de perseguição e os demais colombianos, não necessariamente adversários ou detratores, querem que sejam averiguadas as sombras ao redor do homem que governou durante uma das fases mais sombrias da guerra com as FARC, hoje extintas, com exceção de pequenos grupos de dissidentes. Em seus dois mandatos, entre 2002 e 2010, as forças militares cometeram mais de 6.400 execuções extrajudiciais, ou seja, assassinatos de civis, apresentados posteriormente como guerrilheiros mortos em combate, em troca de benefícios para os militares. A cifra corresponde ao cálculo da Jurisdição Especial para a Paz (JEP), que em fevereiro triplicou a estimativa até então conhecida, elaborada pelo Ministério Público.
O caso que levou Uribe à prisão domiciliar em agosto insere-se nesse contexto histórico, mas tem a ver com a suposta manipulação de testemunhas em um processo de paramilitarismo iniciado em 2012. A acusação do dirigente esquerdista Iván Cepeda buscava demonstrar vínculos entre o ex-mandatário e grupos paramilitares. Por sua vez, este o denunciou por suposta conspiração, mas a justiça acabou arquivando o processo e abriu outra investigação contra Uribe. A instrução passou pela Corte Suprema, mas após sua prisão o ex-presidente, que tinha uma cadeira no Senado, decidiu renunciar ao cargo e, assim, perdeu o foro privilegiado. O caso foi encaminhado então para o Ministério Público, que no início de março solicitou à justiça o arquivamento de todo o processo. Desde então, um juiz examina se arquiva a investigação ou leva o caso a julgamento.
Para além das repercussões jurídicas do escândalo, o caso Uribe, assim como sua figura política, divide o país há anos. A Colômbia acaba de sair de um conflito armado de mais de meio século e o caminho para a reconciliação passa pelo princípio de busca da verdade. A gravidade das suspeitas geradas em torno do ex-mandatário e das acusações contra ele tem a ver precisamente com a dor da guerra e com o desejo de setores muito amplos da sociedade de poder virar a página. O atual presidente, Iván Duque, defendeu Uribe de forma constante e acrítica. Como ele, rejeitou sem nuances os acordos de paz alcançados por Juan Manuel Santos que levaram à desmobilização das FARC. Uribe não está disposto a admitir nenhuma responsabilidade. A justiça está prestes a determinar seu futuro.
Equador
Foi uma de suas primeiras mensagens ao saber do resultado das eleições, no domingo, e repetiu-a na segunda-feira em seu primeiro pronunciamento. O presidente eleito do Equador, Guillermo Lasso, prometeu que não haverá perseguição. “Isso acabou”, afirmou o veterano dirigente conservador. O próprio pronunciamento seria insólito em condições normais, assim como seria perguntar-lhe a respeito em uma entrevista coletiva. Mas o país andino tem um antecedente muito recente.
O ex-presidente Rafael Correa ainda é uma das figuras mais influentes da política equatoriana, mas exerce esse poder desde o exterior por causa de seus problemas com a justiça. Nos últimos quatro anos os tribunais acumularam uma dezena de processos contra ele e finalmente no ano passado o promotor da chamada “revolução cidadã” foi condenado por suborno. Correa reside na Bélgica, país de sua mulher, e em uma entrevista ao EL PAÍS garantiu que não o deixam voltar por medo de que volte a concorrer e ganhe as eleições.
As investigações começaram quando deixou o poder, em 2017, e passou o bastão ao seu herdeiro político, Lenín Moreno. O governante cessante ganhou aquelas eleições precisamente por ter se apresentado como candidato do correísmo. Mas, uma vez instalado no Palácio Carondelet, começou a se distanciar de seu Correa, de quem havia sido vice-presidente, e acabou rompendo com ele e com seu projeto de esquerda. O ex-mandatário recusou-se a voltar para não enfrentar um processo que considera eminentemente político. E optou por continuar jogando nesse mesmo terreno. Conseguiu promover uma candidatura, liderada por Andrés Arauz, que venceu facilmente o primeiro turno das eleições, em fevereiro, mas não conseguiu se impor sobre Lasso.
Com estas premissas, embora o presidente eleito tenha afirmado que não haverá perseguições, o retorno de Correa se complica porque, de qualquer forma, a justiça seguirá seu curso.
Bolívia
A última governante da Bolívia, Jeanine Áñez, foi presa há um mês junto com outros representantes do gabinete interino que presidiu durante um ano depois de chegar ao poder em meio a uma convulsão social e depois da derrubada de Evo Morales. O líder indígena renunciou em meio a acusações de fraude nas eleições de outubro de 2019. Ele o fez depois de perder o apoio das Forças Armadas. Em seguida, o ex-presidente deixou o país, foi acolhido no México e posteriormente asilou-se na Argentina. Uma das primeiras acusações contra Morales que o Governo provisório de Áñez apresentou ao Ministério Público foi por “sedição e terrorismo”. O político não voltou até outubro, quando seu partido, o Movimento pelo Socialismo (MAS), venceu as eleições novamente e recuperou o poder. E hoje a ex-presidenta está em prisão preventiva sob as mesmas acusações de “sedição e terrorismo”.
Este é o círculo que descreve não apenas uma atuação da justiça questionada por vários organismos internacionais como a Human Rights Watch (HRW), mas também é a fotografia de uma sociedade despedaçada e de uma classe política que prioriza a revanche às reais urgências do país. O presidente Luis Arce disse ao EL PAÍS depois de vencer nas urnas que não buscaria fazer o mesmo com seus adversários. “Não queremos revanche na Bolívia, há muitas coisas a fazer”, afirmou. O político, que tem uma trajetória mais pragmática que Morales, passou dessas declarações a defender que a prisão de Áñez não é uma vingança nem um gesto de “ódio”. “O que nos move é um desejo inquebrantável de justiça”, disse.